AMOR FATI


Imagine um bloco colocado em movimento sobre uma superfície lisa. Se não houvesse a força de atrito do bloco com a superfície e nem força de resistência do ar esse bloco permaneceria eternamente em movimento contínuo. Poderíamos considerar isto como uma situação ideal, uma vez que sabemos que de fato não acontece. Agora imagine um pêndulo onde a massa pendular é uniformemente distribuída, a haste na qual este pêndulo está preso, além de não possuir massa (!), é inextensível e inflexível, o movimento pendular acontece em apenas um plano e não há força de atrito. Situação ideal novamente!

É muito fácil imaginar situações ideais: líquidos incompressíveis, viscosidade nula, formas circulares... E para corrigir o desvio da idealidade basta usar um coeficiente de fugacidade, de atrito, de atividade.... As situações acima podem parecer distantes, mas será que não transportamos esse mesmo conceito para nossas vidas?

O ideal de companheira (o), o ideal de emprego, de conta bancária, casa, carro... E aí surgem aquelas ideias: “Quando eu ganhar na loteria eu vou ser feliz!”, “Quando eu conseguir aquele emprego eu vou ser feliz!”. Na vida real é comum a transferência da correção da não idealidade para o futuro, ou seja, pode-se facilmente cair na seguinte armadilha: “o futuro será ideal”. É como se toda a realidade presente fosse compensada pela ideia de idealidade num futuro, próximo ou não, existente ou não.

A negação da realidade como ela se apresenta é um tema que merece um texto à parte e integra-se ao conceito de niilismo. Por hoje vamos tratar apenas de relacionar a vivência do presente com o AMOR FATI. Na semana passada, vimos uma introdução ao conceito de Eterno Retorno e chegamos àquele sentimento de urgência em se viver o agora com a intenção de que se queira revivê-lo inúmeras vezes mais, uma vez que ele é eterno!

O amor fati, por sua vez, significa “amor ao destino”. O conceito de amor fati veio dos estoicos – filosofia helenística -  e Nietzsche, como já sabemos, era um ávido leitor dos gregos antigos. Amor fati implica na aceitação de tudo o que acontece, aconteceu ou ainda irá acontecer. Aceitar tudo o que foi ofertado ou tomado.

Mas isso significa aceitar também as coisas ruins? Veja, as coisas, os fatos, as circunstâncias, tudo isso é, tudo isso existe. Todavia, temos o vicioso hábito de julgar e atribuir qualidades a tudo e então classificamos as coisas como boas ou más, por exemplo (aqui vale a recomendação de leitura de “A Genealogia da Moral”- também do Nietszche). Mas essa classificação subjetiva é questionável quando levamos em conta a transvaloração dos valores, como citado no texto do Ubermensh. Esta aceitação do que acontece não está ligada à passividade, muito pelo contrário, ela afirma a vontade de potência em si e no mundo (olha lá o Ubermensch novamente).

Repare que para Nietzsche a palavra ‘destino’ reflete um sentido totalmente positivo e retrata-se exatamente como tudo o que deve ser querido e amado, ou seja, o objeto do amor fati.  Assim, devemos partir do princípio que tudo é, tudo retorna e só existe o agora.  Devemos amar as coisas exatamente como elas se apresentam a nós. Transformar o “Foi assim!” em “Assim o quis!” [1].

Aqui podemos citar também Sêneca e o imperador Marco Aurélio:

“Nada do que vier a me acontecer me abaterá e me deixará com aparência alterada. Aceitarei de boa vontade aquilo que me cabe, pois tudo o que provoca nossos sofrimentos e nossos medos é da lei da vida [2].”

“Ó mundo, tudo o que convém à tua perfeição, convém a mim! Nada me é prematuro ou tardio do que para ti é necessário. Tudo o que me trazem as tuas estações, é para mim fruto, ó Natureza! Tudo vem de ti. Tudo em ti reside. A ti tudo retorna. [3]

Assim, podemos dizer que além de amar o destino, amor fati significa também aprender com tudo o que nos acontece, independente da nossa classificação de bom ou ruim para tal.

E, por fim, citamos Nietzsche em Ecce Homo:

“Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em toda a eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário - mas amá-lo” [4].

Entretanto, sabemos que o amor fati é um pensamento de difícil interiorização e constante vivência. Vale a ressalva que vivemos um período da história em que há uma crise de valores e uma inundação social no niilismo passivo (ainda vamos conversar sobre isso). A completa assimilação do Eterno Retorno é o principal acesso para o amor fati.

Assim, voltando ao início, será que não idealizamos demais a vida, as coisas que queremos, que desejamos, imaginando que isso algum dia, no futuro, possa acontecer; e com isso, deixamos de afirmar nossa presença no real presente que temos? Vale a reflexão, afinal, nós só temos o agora!

Até o próximo texto! 🙋

ps: Clarice Lispector termina “A Paixão segundo GH” com uma máxima que muito me lembra tudo o que conversamos hoje:
“A vida se me é!” J

Renata Chinda- rechinda@gmail.com

[1] F. W. Nietzsche, “Assim Falava Zaratustra,” em Da Redenção, 1883
[2] L. A. Sêneca, “Cartas a Lucílio,” em Livro VXI - Carta 96
[3] M. Aurélio, “Meditações,” em Livro IV. XXIII, p. 37
[4] F. W. Nietzsche, “Ecce Hommo,” em Porque sou tão esperto - aforismo 10
[5] créditos da maravilhosa (!) imagem: Jozo Novak http://motstudio.com/amor-fati





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